Leitura Complementar

Histeria: um mistério que atravessou séculos

Lição de Anatomia, de Rembrant

Babinski: E onde se localiza a histeria?
Dark: Não sei!
Léon: E como poderia? Ninguém sabe nem mesmo se a histeria existe!
Richer: O Professor Charcot é categórico em afirmar que há uma lesão!
Babinski: Que lesão? Ele diz que é uma lesão dinâmica, lesão sem matéria! Isso é lesão?
Léon: Antes Hipócrates e Platão, que a localizaram no útero, considerado aquele animalzinho pulando e causando os maiores sufocos!
Dark: Mas o Professor hoje fala de pontos histerógenos em mulheres ovarianas e homens testiculares!
Babinski: Abram-se os Histéricos!

(Trecho extraído da peça A Lição de Charcot, de Antonio Quinet, p.21)

Desde os tempos mais remotos, a histeria tem se configurado como uma doença enigmática, rebelde, que durante séculos não se deixou-se classificar nem subjugar. E como poderia? Um doença que imitava os sintomas de tantas outras, sem explicação anatômica ou fisiológica que pudesse ser comprovada, sem tratamento eficaz, como classificá-la?

Somente no final do século XIX, graças a Jean Martín Charcot a histeria passou a ser considerada digna de estudo, foi classificada e subjugada a leis, regularidades; as histéricas deixaram de ser ouvidas com descrédito, recuperaram sua dignidade. Foi quando Sigmund Freud, graças a seu contato com Charcot e Breuer, o responsável pelo caso Ana O., finalmente encontrou a etiologia da histeria e fundou a psicanálise.

Acompanhemos como foi vista a histeria durante todos esses séculos, segundo a cronologia apresentada por Antonio Quinet, em seu livro A lição de Charcot (2005):

- Antigo Egito: a histeria era vista como descolamento da matriz (útero); concepção que perdurou até pouco depois do Renascimento. O tratamento prescrito nos papiros médicos era a utilização de medicamentos para puxar a matriz para baixo e intervenção do deus Thot (potência masculina).

- 60 a. C.:
  1. Hipócrates (460-377 a.C.): considerado o pai da medicina, acreditava que a histeria tratava-se de uma sufocação da matriz e receitava como tratamento o coito.
  2. Platão (c.428-c.347 a. C.): considerava a matriz como um ser vivo, possuído de desejo, principalmente de fazer crianças, que dominava algumas mulheres.

- Século I:
  1. Celson (30 a. C. - 382 d. C.): considerava a histeria como doença matriz, que por vezes tira a consciência e provoca a queda, como a epilepsia.
  2. Areteu da Capadácia (120 – 180): considerava a histeria com doença da matriz que deveria ser tratada com odores. A matriz era vista como um animal que gostava de odores agradáveis dos quais se aproximava e evitava os desagradáveis. Como tratamento recomendava colocar odores fétidos nas narinas para o útero descer e os melhores perfumes na vulva para atraí-lo.
  3. Éfeso (98 – 198): acreditava que a histeria era causada por repetidos abortos, partos prematuros e viuvez prolongada (ligada ao desejo de ter filhos). Recomendava como tratamento o isolamento, banhos e cataplasmas, seguidos de passeios, leituras e viagens.

- Século II:
  1. Galeno (131-201): rompe com a tese do deslocamento do útero e aponta como causa a retenção da semente feminina (semelhante ao esperma masculino); o que abre a possibilidades para se pensar numa histeria masculina, por retenção do esperma.

- A partir do Século III: a histeria deixa de ser uma doença do útero para ser vista como intervenção divina ou possessão demoníaca.

 Julgamento de Salém, onde várias bruxas foram queimadas

- Renascimento: as histéricas eram vistas como acometidas por possessão demoníaca ou como bruxas, as quais foram julgadas pela Inquisição, que tinha no seu “Mallus Mleficarum” um manual que identificava quem deveria ir para a fogueira.

- Século XVII:
  1. Lange (1689): acreditava que a histeria era causada por vapores histéricos, provocados por fermentos seminais. Indicava como tratamento mudanças de hábitos sociais.
  2. Tomas Wilhis (1621-1675): acreditava na teoria dos “espíritos animais”, movimento dos átomos; a histeria seria ocasionada por movimentos do baixo-ventre que provocariam uma série de sintomas em mulheres de todas as idades, podendo acometer, também, alguns homens.
  3. Tomas Sydenham (1624-1675): via a histeria como uma doença enganadora, que se apresentava sob várias faces, imitando uma série de outras doenças.

- Século XVIII:
  1. Philipe Pinel (1745-1826): quem primeiro desacorrentou os loucos, médico da Salpêtrière, via a histeria como uma neurose, “continência austera”, recomendando o matrimônio.

    A Lição de Charcot
- Século XIX:
  1. Wilhelm Griesinger (1817-1868): “doença detestável” causada por um grave comprometimento psíquico.
  2. Charles Lasègue (1816-1883): considerava a histeria como fenômeno impalpável e caótico, que jamais poderia ser descrito e classificado.
  3. Jules Falret (1824-1902): identificou cinco traços típicos histéricos: grande mobilidade de estados psíquicos; contradição e controvérsia; duplicidade e mentira; rapidez na produção de ideias, impulsos e atos; espírito sonhador, romanesco, deixando a fantasia predominar sobre a realidade.
  4. Paul Briquet (!796-1881): confere dignidade a histeria, considerando-a como uma doença a ser levada a séria, uma doença das paixões. Teria em suas manifestações a reprodução de cenas e sentimentos vivenciados.
  5. James Braid (1795-1860): descobre os efeitos da sugestão na histeria, como acontece na hipnose.
  6. Jean-Martín Charcot (1825-1893): resume a etiologia na hereditariedade, dedicando-se a observação e descrição de suas leis; fez a histeria ser respeitada como verdadeira entidade clínica, fazendo dela um tipo clínico completo. Acreditava numa lesão dinâmica, que associada a ocorrência de traumas psíquicos poderia despertá-la. Utilizava a hipnose para como diagnóstico diferencial da histeria.
  7. Hyppolite Bernheim (1837-1919): opositor de Charcot, afirma que todas as manifestações da histeria são produto da sugestão; a histeria seria um fenômeno fabricado artificialmente.
  8. Joseph Babinski (1857-1933): aluno de Charcot, substitui o conceito de histeria por “pitiatismo”, que vem de piti, aquilo que é curado por persuasão. A histeria não seria uma doença, pois é apenas produto da sugestão ou simulação.
  9. Pierre Janet (1859-1947): se opõe a Charcot (pelo emprego do método neurológico no estudo da histeria) e a Bernheim (pela redução da histeria a sugestão), propondo a teoria do “estreitamento da consciência”, onde a histeria estaria relacionada com ideias presentes no “subconsciente”, que aparecem durante a hipnose. Uma vez extraída a ideia patogênica elimina-se o sintoma. 
      
- A Grande Virada Secular:
  1. Sigmund Freud (1856-1938): acredita que a histeria trata-se de uma defesa contra a recordação (idéia) de um evento traumático de natureza sexual ocorrido (ou fantasiado) na infância. O tratamento consiste na “associação livre”, livre associação de ideias para se chegar às cenas traumáticas “esquecidas” (recalcadas) no Inconsciente.
  2. Jacques Lacan (1901-1981): vê o sujeito histérico como um sujeito dividido em relação ao sexo. Considera a histeria como um tipo de laço social que se designa como fazer desejar; o sujeito histérico está sempre buscando ser desejado pelo Outro, ele não é seduzido, mas seduz. Despatologizou a histeria, acreditando, inclusive, numa histeria desprovida de sintomas, vista como uma histeria perfeita. 
     
- Na atualidade: o termo histeria foi abolido pela psiquiatria atual e em seu lugar surgem os “transtornos dissociativos e somatoformes”, cujo tratamento é medicamentoso e comportamental; não há mais espaço para a subjetividade na psiquiatria.

Referência Bibliográfica:

Quinet, A. A Lição de Charcot. Jorge Zahar: Rio de Janeiro, 2005


O Caso Ana O.


Em 1882, Breuer conta a Freud sobre um curioso caso de histeria, o primeiro e último do qual tratou, o conhecido caso Ana O.

Ana era uma inteligente jovem de 22 anos que teve uma criação muito rígida, o que a impediu de amadurecer sexualmente. Em 1880 seu pai ficou gravemente enfermo e ela cuidou dele durante dias e noites, até que, esgotada, ficou doente, apresentando um quadro de sintomas bastante curiosos, que os médicos diagnosticariam como histeria. Foi quando chamaram Breuer para cuidar de seu caso.

A jovem apresentava acessos de tosse nervosa, estrabismo, transtorno da visão, paralisia no braço direito e no pescoço, além de um estranho problema de linguagem, conseguia entender o alemão, sua língua materna, mas só conseguia falar em inglês; frequentemente sofria de alucinações.

No ínico, Ana parecia estar melhorando, até que, em 1881, seu pai faleceu. Desde então, suas alucinações diárias passaram a ficar mais violentas, caindo em transe durante a noite, quando falava sozinha. Ao sair desses transes, ela dizia sentir-se melhor.

Breuer tentava anotar as palavras que Ana proferia durante seus transes, o que lhe servia de recurso para que, depois, ela lhe contasse sobre suas alucinações. Entretanto, Ana ficava por dias angustiada quando não conseguia contar-lhe sobre seus delírios. Ela chamava esse método de tratamento de Breuer como “cura pela fala”, já que muitos de seus sintomas desapareciam após essas conversas. O problema é que logo apareciam outros sintomas; um deles foi a hidrofobia, durante seis semanas Ana não conseguia ingerir nenhum líquido. Ela dizia que só em ver o copo sentia nojo. Um dia, após um de seus transes, Ana contou a Breuer sobre um acontecimento do qual havia esquecido; tratava-se de uma visita que havia feito a uma certa senhora, quando vira um cachorro bebendo em um copo, o que lhe deu muito nojo, embora ela não tenha comentado nada com a senhora, por educação. Depois deste transe Ana conseguiu voltar a beber.

Ao longo do tempo, Breuer foi percebendo que os sintomas desapareciam conforme Ana recordava do momento em que eles haviam surgido. Ele, então, resolveu hipnotizá-la e pediu-lhe que se lembrasse de quando começou a ter estrabismo. Ela relatou-lhe sobre um dia em que teve vontade de chorar, mas não o fez para não preocupar seu pai, que perguntou-lhe sobre as horas; para ver o relógio sem que o pai notasse seu semblante, Ana só teve a alternativa de torcer os olhos. Sobre a paralisia do braço Ana relatou-lhe que, quando cuidava de seu pai, passava todas as noites acordada, e que em um determinado dia viu uma grande serpente negra e tentou afugentá-la com o braço, mas este não se moveu. Ela quis gritar, mas a única coisa de que pôde se lembrar foram algumas rezas infantis em inglês.

A técnica do método catártico permitiu que Breuer começasse a eliminar um a um os sintomas de Ana. Então, ele lhe disse que em breve não precisaria mais vê-la. Mas ela não aceitava a possível separação, pois havia tornado-se muito dependente dele. Um dia chamaram-lhe para ver Ana em sua cama, ela disse-lhe que ia ter um filho seu. Breuer não agüentou mais e, no dia seguinte, viajou com sua esposa em uma segunda lua de mel.

O verdadeiro nome de Ana era Bertha Pappenheim (1859 - 1936). Mais tarde ela conseguiu recuperar-se e chegou a ser uma destacada assistente social e feminista.

Referência Bibliográfica:

APPIGNANESI, R. e ZÁRATE, O. Freud para Principiantes. Buenos Aires: Era Naciente SRL, 2002



Psicanálise e Linguagem


“Há inclusive uma obrigatoriedade, na análise do sonho, de se passar do sonho às associações para fazer existir o inconsciente que só se apreende ao pé da letra” (QUINET, 2000 - p. 23)

Em seu livro A Interpretação dos Sonhos, Freud (1900) nos apresenta uma instância psíquica denominada Inconsciente, para o qual apontou algumas leis de funcionamento. Segundo ele, os desejos inconscientes apareceriam nos sonhos de forma disfarçada, passando por dois processos: a condensação e o deslocamento. A condensação seria o motivo pelo qual a interpretação de um sonho é sempre maior do que seu relato; e o deslocamento seria o motivo de alguns representantes psíquicos aparecerem sob a forma de outros, de menor valor decifratório.


Lacan, ao fazer uma releitura da obra de Freud, concebe um inconsciente estruturado pela linguagem e propõe uma supremacia do significante sobre o significado. Saussure, o pai da linguística moderna, diz que um signo linguístico é composto por um significado e um significante, ou seja, respectivamente, por um conceito e uma imagem acústica. Um significante pode ter vários significados diferentes, dependendo do contexto em que é utilizado. E é exatamente por isso que Lacan vai inverter a fórmula saussiana, s(significado)/ S (significante), valorizando a importância do significante; sobre o qual, segundo ele, deve se debruçar o psicanalista, que deve valorizar o deslizamento de um significante a outro, e não buscar significados, para que assim, o inconsciente, que se estrutura através de uma cadeia de significantes, possa aparecer.
 
Signo Linguístico

Fórmula proposta por Lacan

Lacan, ao conceber um inconsciente estruturado pela linguagem, propõe duas leis de funcionamento para este: a metáfora e a metonímia. A metáfora seria o equivalente a condensação freudiana, e a metonímia, ao deslocamento.

A formação de uma metáfora consiste na superposição de um significante por outro, tendo em vista algum tipo de ligação entre o que os dois termos designam, a metáfora também pode ser entendida como uma comparação abreviada, sem o conectivo. No exemplo: “O tempo é uma cadeira ao sol, e nada mais”(Carlos Drummond de Andrade), a comparação entre tempo e cadeira ao sol é puramente subjetiva, cada pessoa pode entender de uma forma diferente; Drummond utilizou-se da metáfora para definir o significante tempo, pois lhe faltou palavras para atribuir um significado a este significante. Desta forma, a metáfora seria uma maneira de expressar aquilo que não podemos definir de outra forma, que não consegue ser significado, pois o inconsciente não é composto de significados, mas de significantes.

“Se a metáfora é aquilo que constitui o sintoma, a metonímia é o que caracteriza o desejo. Por quê? Porque o desejo é marcado pela falta, por aquilo que não se tem”. (QUINET, 2000 - p. 32)

A metonímia é uma figura de linguagem que consiste na substituição de um termo por outro, com o qual possua algum tipo de ligação. No exemplo: “O que dói são as pessoas” (Rafael Costa), o autor se utiliza da metonímia para dizer sobre o que sente, mas acaba substituindo o sentimento gerado pela fala das pessoas, que não tem nome, pelo significante pessoas. É sobre essa ausência de significados, que brincam os poetas, que precisam de um poema inteiro, para dizer aquilo que não conseguem significar; brincam o tempo todo entre metáforas e metonímias, pois é esta a forma do inconsciente se expressar.

"Ao se ficar satisfeito e contente com aquilo que se tem, certamente o desejo se manifestará em outro lugar, pois o desejo é propriamente a falta, é sempre desejo de outra coisa. Pois se é desejo de uma coisa, daqui a pouco já é de outra coisa e em seguida de outra, porque a característica do desejo é ser metonímico, deslizar na cadeia significante. O desejo é a metonímia da falta: o envio da significação sempre a outro significante da metonímia corresponde à característica do desejo sempre faltoso." (QUINET, 2000 - A Descoberta do Inconsciente: do desejo ao sintoma. - p. 33 )

A aproximação da psicanálise com a linguística parece ficar cada vez mais clara a medida em que percebemos que a escuta psicanalítica perpassa todo um jogo de palavras, onde o inconsciente fala o tempo todo, e que cabe a nós buscar compreender aquilo que ele incessantemente nos diz.

Referência Bibliográfica:

FREUD, Sidmund (1900 -1901). A Interpretação dos Sonhos (I). Edição Standart Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Imago:Rio de Janeiro, 1996.

QUINET, Antônio. A descoberta do inconsciente: do desejo ao sintoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2000.



O Mito do Édipo


Com base em sua prática clínica e na análise de seus próprios sonhos, Freud formula sua teoria sobre o Complexo de Édipo, que tem sua base, em poucas palavras, em sentimentos de desejo pela mãe e de agressividade contra o pai. Ao elaborar esta teoria Freud recorre ao antigo mito de Édipo, ao qual tenramos expor abaixo.

O Rei Laio e a Rainha Jocasta estavam muito amargurados por ainda não terem tido filhos; então, Laio resolve consultar o Oráculo de Delfos, que lhe adverte que se ele terá um filho, e que este o matará e casar-se-á com sua mãe. Tentando impedir que esta tragédia acontecesse Laio fura os pés da criança (Édipo significa “pés inchados”), para que ela não possa fugir, e a abandona em um monte para que morra. Um pastor a encontra e a leva para outro reino; neste lugar, Édipo foi criado como um príncipe. Passados alguns anos Édipo vai a Delfos e consulta o Oráculo, que lhe diz que ele matará seu pai e casar-se-á com sua mãe, o que lhe deixa muito assustado. Ao sair de Delfos, Édipo encontra o Rei Laio no caminho; e estes acabam discutindo, Édipo mata Laio, sem nem ao menos suspeitar que ele era seu verdadeiro pai.

Após o ocorrido, Édipo segue para Tebas, reino que pertencia a Laio. Ao chegar lá, encontra o local ameçado pela Esfinge, que devora a quem não consegue responder a seu enigma: “Qual o animal que possui 4 pernas pela manhã, 2 ao meio-dia e 3 ao entardecer?”. Édipo consegue responder ao enigma: “É o homem, que engatinha na infância, caminha erguido em sua maturidade e precisa de uma bengala para andar na velhice.”, o que deixa a Esfinge enfurecida, jogando-se no mar.

Édipo, então, casa-se com Jocasta e com ela tem dois filhos. Eles vivem em paz por um longo tempo, até que um dia uma praga toma conta de Tebas e Édipo resolve consultar o Oráculo, que diz a única maneira de acabar com a praga é descobrindo quem matou Laio. Algumas investigações são feitas e Édipo descobre que matou o próprio pai e casou-se com sua mãe, cumprindo seu destino. Édipo fura os dois olhos e Jocasta suicida-se.

Referência Bibliográfica:

APPIGNANESI, R. e ZÁRATE, O. Freud para Principiantes. Buenos Aires: Era Naciente SRL, 2002


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